Curiosidades de Santos – O testamento que deu origem a Escolástica Rosa

Santos, 12 de dezembro de 1899. As mãos trêmulas seguravam o papel que acabara de registrar os últimos desejos de um homem que dedicara sua vida a causas firmes. Sob os olhares atentos e resignados de velhos amigos, João Otávio dos Santos, 69 anos de idade, senhor de uma história inigualável na cidade santista, tinha a impressão que, de certa forma, seu caminho na longa estrada da vida estava encontrando o ponto final. Nascido em 8 de março de 1830, fruto de um caso fortuito de um importante membro da tradicional família Nébias e a negra escrava Escolástica Rosa, João Otávio relia atentamente o que acabara de ditar ao testamenteiro, seu dileto amigo, Júlio Conceição. Em linhas gerais, ele declarava não possuir nenhum herdeiro, nem ascendente, nem descendente, e que desejava, acima de tudo, deixar um legado que pudesse gerar oportunidades aos jovens carentes da cidade, aos menos favorecidos que, sob a luz de seu exemplo de vida, pudessem alcançar a dignidade e multiplicar benemerências.
O ponto central de seu pedido no provável leito de morte era que fosse erguida uma instituição “destinada à educação intelectual e profissional de meninos pobres, semelhante ao de D. Ana Rosa, existente na Capital do Estado”. Para isso, deixara expresso no testamento que a dita entidade deveria ser construída, às expensas de sua herança, no amplo terreno ocupado pela chácara de sua residência, no ramal da Ponta da Praia, local onde deveriam, ainda, morar o futuro diretor da entidade e sua família. Para conduzir tal empreendimento, João Otávio elegeu a Santa Casa de Misericórdia, instituição herdeira de todos os bens, direitos e ações constitutivas do seu patrimônio, uma fortuna amealhada ao longo de anos empreendendo no comércio, principalmente no setor bananicultor. Sua vontade expressa era que boa parte da herança fosse utilizada para a viabilização e manutenção do lugar, que receberia o nome “Dona Escholástica Rosa”, em memória de sua mãe (falecida em 1853).
Ao término da leitura, João Otávio sorriu discretamente, dirigindo seu olhar a Júlio Conceição, seu compradre, que assentiu com a cabeça. Não havia a necessidade de juramentos entre ambos. O desejo do honrado homem seria, sem sombra de dúvida, colocado em prática. Tomada a decisão, coube ao tabelião a tarefa de registrar o testamento, testemunhado por Conceição.
Quase sete meses depois, no dia 9 de julho de 1900, o combativo João Otávio tombaria vencido pela arterioesclerose. A partir daquele ponto, uma imensa tarefa precisava ser realizada
A polêmica do lugar
A primeira providência foi elaborar o regulamento da futura escola, que deveria ser “organizada, construída e mantida exclusivamente com a renda do seu patrimônio, com a finalidade de dar educação gratuita, moral, cívica e profissional, a meninos pobres, sem distinção de nacionalidade, de preferência órfãos, em regime de internato, fixado inicialmente em 50 o número de educandos”.
Antes de levar à efeito o desejo do compadre, Conceição sugeriu instalar o dito instituto nas dependências do Hotel Internacional do José Menino. A proposta se dava por dois motivos: o primeiro por função econômica, uma vez que o prédio já estava pronto e seria apenas adaptado para as funções. O segundo era sua localização, “a mais hygienica e salubre de Santos, com largo espaço para recreio dos alunos e passeios ao ar livre.”
O testamenteiro poderava que o local onde situava-se a Chácara de João Octávio, apesar do desejo do próprio, não apresentava condições sanitárias adequadas, devido à presença do “Rio Conrado”, que cortava a propriedade. Porém, esse não fora o entendimento da comissão criada pela Irmandade da Santa Casa para tratar do caso. Objetivando realizar a todo custo a vontade do benemérito, que fora provedor da instituição algumas vezes entre 1875 e 1896, a opção seria pela construção do prédio para a finalidade desejava. Nas discussões sobre as opções (Hotel Internacional ou Ponta da Praia), algumas pessoas chegaram a alegar que Júlio Conceição, que era dono de hotel, o Balnerário, desejava, na verdade, eliminar um concorrente.
O testamenteiro chegou a solicitar pareceres técnicos à Comissão Sanitária e à Comissão de Saneamento de Santos (chefiada por Saturnino de Brito) a fim de provar que o que estava dizendo tinha justificativas. Como resposta, os dois órgãos afirmaram que, de fato, seria vital que fossem executadas obras de saneamento no terreno da Ponta da Praia, mas não condenou o local. As comissões, ao contrário, se colocaram à disposição para melhor atender as necessidades de apoio, caso o lugar escolhido fosse de fato a antiga chácara de João Octávio, como de fato foi.
Um prédio soberbo
Batido o martelo na questão, a Santa Casa contratou os serviços do renomado escritório do arquiteto paulistano Ramos de Azevedo, que ficou responsável pelo projeto do Instituto Dona Escholástica Rosa. A construção seria outorgada às mãos dos irmãos Del Débio (Angelo e Silvério).
Vários meses foram necessários para a elaboração do projeto executivo do complexo estudantil. Em reunião ocorrida em 7 de agosto de 1904, entre Julio Conceição, Ramos de Azevedo e a comissão da Santa Casa, ficou estabelecido o orçamento por base em preços unitários, de unidade métrica contratual, para todos os trabalhos, da alvenaria aos acabamentos. O custo total da obra chegou a atingir 458 contos de réis (equivalentes hoje a R$ 24 milhões).
O Instituto foi construído sob rígidos critérios de higiene escolar e planejado para ser justamente uma escola de ensino profissional. Sua arquitetura facilitaria a concentração dos alunos. As salas eram dotadas de grandes janelas, que permitiam a “invasão” da luz, obscurecendo o ambiente externo (os jardins, a rua, etc). Segundo estudiosos do assunto, a arquitetura programada por Ramos de Azevedo levou em conta os preceitos higienistas e didático-pedagógicos normatizados pelo modelo francês do final do século XIX e início do XX, aliado ao desenvolvimento urbano e social registrado naquele período.
Na questão apontada por Júlio Conceição como impeditivo para a construção do Instituto naquele ramal da Ponta da Praia, a solução, além da contribuição das comissões de saneamento, que providenciaram a canalização do Rio Conrado e aterramento de áreas alagadas, foi construir as edificações em plano elevado por aterro .
O monumento mausoléu
Julio Conceição quis perpetuar a presença do velho amigo no local que ele tanto desejara ver erguido. No final de 1905, o testamenteiro de João Otávio começou a negociar com o escultor italiano Amadeo Zani, que fora recomendado por Ramos de Azevedo, a produção de um monumento que retratasse o grande benemérito, a ser erguido no pátio central do colégio. Na base do monumento, seriam depositados os restos mortais do filho de Escholástica Rosa , o que acabou sendo feito na solenidade ocorrida em 20 de outubro de 1907. Na ocasião, Julio Conceição diria que “a memória do saudoso João Octávio dos Santos está perenemente ali, como merece, rodeada de folhagens e flores, encerrando os seus despojos mortaes, que tive o honroso e imprescindível dever de velar por algum tempo em meu poder”.
Os restos mortais (ossos) do homenageado estavam em uma urna de madeira. Outra urna foi colocada junto, esta contendo cerca de 50 publicações da época e moedas de prata, níquel e cobre, de diferentes nacionalidades.
Na base do monumento, feito em granito, foram gravadas as seguintes inscrições. De um lado: “JOÃO OCTAVIO DOS SANTOS, 8 Março 1830 – 9 Julho 1900, Fundador do Instituto D. Escholastica Rosa”. Do outro lado, as palavras “TRABALHO E CARIDADE”.
A inauguração do prédio
O imponente prédio, joia à beira mar (situado na atual avenida Bartolomeu de Gusmão, 111), foi inaugurado solenemente oito anos depois da morte de João Octávio, em 1º de janeiro de 1908, em cerimônia presidida pelo juiz de Direito da 1ª Vara da Comarca de Santos, Dr. Primitivo de Castro Rodrigues Sette, contando comdiscurso feito por um descendente da tradicional família Andrada e Silva, o Dr. Martin Francisco Ribeiro de Andrada.
Recursos para manutenção do colégio
João Otávio pensara em tudo no que se referia à continuidade de seu legado. Em seu testamento, além do repasse de 120 contos de réis em dinheiro vivo (cerca de R$ 6 milhões nos dias de hoje) à Santa Casa, ele mandara reservar, entre as centenas de imóveis doados à Irmandade, nada menos do que setenta e quatro propriedades, cujos aluguéis deveriam cobrir as despesas com pessoal, alimentação e manutenção da escola.
O início das aulas
Antes mesmo da inauguração, a Irmandade Santa Casa, já concluia o processo de contratação dos funcionários que iriam tocar em frente o grande projeto de João Octávio. Tanto o pessoal da área administrativa, como o corpo docente foram contratados a partir de editais publicados na imprensa local e no Jornal o Estado de São Paulo. Buscava-se, acima de tudo, pessoas com idoneidade e experiência profissional. Um regimento interno garantia, inclusive, mercado de trabalho para os alunos, na própria instituição.
Era o que deixava claro um dos trechos do edital: “As vagas que se derem no corpo docente, serão, de preferência, preenchidas por educandos já diplomados pelo Instituto e que tenham comprovada capacidade para o exercício do cargo”.O primeiro diretor nomeado do Instituto foi o Dr. Francisco Xavier Moretz-Sohn, juiz aposentado, ex-diretor do Colégio Culto à Ciência, de Campinas, e fundador do antigo Colégio Moretz-Sohn, de São Paulo. O corpo de funcionário era formado pelo secretário e guarda-livros, Joaquim de Toledo; corpo docente: Francisco de Paula Caiaffa, Manuel Emílio da Costa (porteiro-almoxarife), Dr. Manuel Maria Tourinho (médico), comendador Manoel Homem de Bittencourt (dentista), Patrício Adriano Soares (professor), Paul Crocine (professor de Ginástica), Foto Ercolani (mestre-alfaiate), Bernardo Antônio de Almeida (mestre-sapateiro), Bento de Menezes (mestre-cozinheiro e confeiteiro), Francisco de Oliveira (mestre-marceneiro) e Properzio Nuti (mestre-copeiro).
Mas um nome em especial ficou marcado de forma indelével na história inicial do Escholástica Rosa: o do diretor prof. Artur Porchat de Assis, que se desdobrou em esforço, dedicação e operosidade.
Formação de jovens para o avanço da cidade
Ao longo de décadas, os cursos oferecidos pelo Escholástica Rosa ajudaram na formação técnica de milhares de jovens que, por sua vez contribuiram para o progresso da cidade. Cursos, como os de Artes Gráficas, Datilografia e Estenografia, Confecções e Corte, Flores e Chapéus, Plástica e Escultura, Carpintaria Naval, Desenho Profissional, Eletrotécnica, Mecânica e Marcenaria, foram algumas das disciplinas técnicas que nortearam os estudos nos primeiros cinquenta anos da instituição. Com o tempo, e o avanço das tecnologias, novas áreas eram exploradas e ensinadas aos jovens.
Primeiro curso técnico do país
Por duas décadas e meia, o Instituto Escolástica Rosa serviu às suas finalidades primárias, administrado pela Santa Casa, em socorro aos meninos em situação de vulnerabilidade, até que, em 18 de dezembro de 1933, o então interventor federal no Estado, Dr. Armando de Sales Oliveira, colocou em prática o plano do governo em criar uma Escola Profissional Secundária Mista (meninos e meninas) em Santos, promulgando o Decreto nº 6.222. No dia seguinte, o secretário da Educação e Saúde Pública, Dr. Valdomiro Silveira, foi autorizado a celebrar contrato com a Irmandade da Santa Casa de Santos para instalação e funcionamento da unidade escolar então criada.
Com isso, Santos recebia um dos primeiros cursos técnicos profissionalizantes, oficiais, no país.Importante ressaltar que o Escolástica Rosa já mantinha cursos desta natureza, sendo reconhecido como um dos primeiros de caráter privados do Brasil. O primeiro diretor nesta nova fase foi Nicolau Prioli.
O colégio santista também recebeu a incumbência de abrigar alunos de ensino técnico de todo o Estado de São Paulo, nos períodos de férias, funcionando como uma autência colônia educativa e de lazer.
No ano seguinte, em 1934, o Escholástica Rosa trocava de direção, assumindo o posto o comendador Pedro Crescenti, que se lá ficou por vinte anos (1934-1954), tornando-se um dos maiores nomes da história da instituição.
As mudanças da passagem do modelo privado (Santa Casa), para o público (Estado), além de conceituais (plano de trabalh), também foram estruturais. O prédio, de característica neocolonial, cedeu lugar ao estilo barroco, com a construção de arcadas e das circulações fechadas ligando os pavilhões.
Cursos secundaristas
Além do caráter técnico, o Escholástica Rosa tinha a missão de educar os jovens santistas pela essência, por meio dos cursos ginasiais. Em 1955, a escola era tida como uma das mais importantes do país, e contava com 2.022 alunos de ambos os sexos, divididos nos cursos Ginasial Diurno, Ginasial Noturno; Aprendizado Diurno; Aprendizado Noturno e Colégio Técnico. Naquele ano, com a saída de Pedro Crescenti, a direção ficou a cargo do prof. Antônio José de Almeida Queirós, o 2º efetivo, que tomou posse no dia 13 de setembro de 1955.
Etec e Fatec
No fim da década de 1950, o prédio voltaria a sofrer novas intervenções estruturais, que foram concluídas apenas em 1969. Parte da nova estrutura acabaria se tornando o espaço hoje ocupado pela atual Etec Aristóteles Ferreira. Já a edificação onde funcionou o internato a partir de 1958, após sua desativação em 1981, acabou por sofrer importantes reformas e adaptações para abrigar a primeira instituição de ensino superior pública da Baixada Santista, a Faculdade de Tecnologia (Fatec), inaugurada em 1987.
A paritr de 2004 o Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (autarquia vinculada à Unesp), mantenedor de 131 Escolas Técnicas Estaduais e 27 Faculdades de Tecnologia – a maior rede pública de ensino profissional da América Latina -, incorporou a Etec Dona Escolástica Rosa que, juntamente com a Etec Aristóteles Ferreira e a Fatec-Baixada Santista, para formar o “campus Santos” do Centro Paula Souza, situação que se manteve até 2018.
Triste notícia
No entanto, por ausência de manutenção predial, o complexo educacional Escholástica Rosa chegou a num ponto crítico, tão lamentável que, certamente, João Otávio, testemunhando tal situação, revisaria alguns termos de seu testamento.
O colégio santista também recebeu a incumbência de abrigar alunos de ensino técnico de todo o Estado de São Paulo, nos períodos de férias, funcionando como uma autência colônia educativa e de lazer.
No ano seguinte, em 1934, o Escholástica Rosa trocava de direção, assumindo o posto o comendador Pedro Crescenti, que se lá ficou por vinte anos (1934-1954), tornando-se um dos maiores nomes da história da instituição.
As mudanças da passagem do modelo privado (Santa Casa), para o público (Estado), além de conceituais (plano de trabalh), também foram estruturais. O prédio, de característica neocolonial, cedeu lugar ao estilo barroco, com a construção de arcadas e das circulações fechadas ligando os pavilhões.
Cursos secundaristas
Além do caráter técnico, o Escholástica Rosa tinha a missão de educar os jovens santistas pela essência, por meio dos cursos ginasiais. Em 1955, a escola era tida como uma das mais importantes do país, e contava com 2.022 alunos de ambos os sexos, divididos nos cursos Ginasial Diurno, Ginasial Noturno; Aprendizado Diurno; Aprendizado Noturno e Colégio Técnico. Naquele ano, com a saída de Pedro Crescenti, a direção ficou a cargo do prof. Antônio José de Almeida Queirós, o 2º efetivo, que tomou posse no dia 13 de setembro de 1955.
Etec e Fatec
No fim da década de 1950, o prédio voltaria a sofrer novas intervenções estruturais, que foram concluídas apenas em 1969. Parte da nova estrutura acabaria se tornando o espaço hoje ocupado pela atual Etec Aristóteles Ferreira. Já a edificação onde funcionou o internato a partir de 1958, após sua desativação em 1981, acabou por sofrer importantes reformas e adaptações para abrigar a primeira instituição de ensino superior pública da Baixada Santista, a Faculdade de Tecnologia (Fatec), inaugurada em 1987.
A paritr de 2004 o Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (autarquia vinculada à Unesp), mantenedor de 131 Escolas Técnicas Estaduais e 27 Faculdades de Tecnologia – a maior rede pública de ensino profissional da América Latina -, incorporou a Etec Dona Escolástica Rosa que, juntamente com a Etec Aristóteles Ferreira e a Fatec-Baixada Santista, para formar o “campus Santos” do Centro Paula Souza, situação que se manteve até 2018.
Triste notícia
No entanto, por ausência de manutenção predial, o complexo educacional Escholástica Rosa chegou a num ponto crítico, tão lamentável que, certamente, João Otávio, testemunhando tal situação, revisaria alguns termos de seu testamento.
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